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A beleza poética da Cidade de Goiás

Há, por entre beirais e pedras que sobrepõem a terra, fazendo chão, uma costura delicada. Fio colorido que amarra mato e gente. Colcha de retalhos desembrulhada como que um presente dado a quem visita a Cidade de Goiás. A antiga capital do estado é vívida na poesia de Cora Coralina. E é pelo poema “Minha Cidade”, escrito por ela, moradora apaixonada pelo cantinho onde nasceu, que te convido a descobrir o que fazer em Cidade de Goiás, enquanto percorremos o destino da forma como ele se apresenta: um misto de história, beleza e poesia. 

Goiás, minha cidade…
Eu sou aquela amorosa
de tuas ruas estreitas,
curtas,
indecisas,
saindo uma das outras.

A lírica confusão urbana tem um porquê. Distante de uma realidade planejada, Cidade de Goiás nasceu da busca por ouro. Foi fundada no século XVIII, por Bartolomeu Bueno da Silva Filho, cerca de 40 anos depois de o seu pai ter descoberto essas terras, nas famosas missões dos bandeirantes que vieram de São Paulo e daqui levaram o metal precioso e os índios. De 1744 a 1935 foi sede administrativa da Capitania e capital do estado de Goiás, até que o posto foi ocupado por Goiânia. 

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Eu sou aquela menina feia da ponte
da Lapa.
Eu sou Aninha.

Foi do lado de lá da ponte da Lapa que Cora acompanhou o desenrolar da vida. “Minha casa velha da ponte” era como a poeta chamava a construção, datada de 1770, e adquirida em 1885 pelo seu trisavô. Por ali, passaram as gerações da família e, hoje, passam as gerações dos fãs. A casa virou museu.  MUSEU CORA CORALINA. Em letra maiúscula, do tamanho das preciosidades que concentra. O tour pelos cômodos inclui o contraponto da história com a modernidade, uma vez que, por meio das interações proporcionadas pela tecnologia, os poemas são revividos, projetados nas paredes, no fogão, na bica d’água. Reserve pelo menos uma hora para percorrer a casa, o jardim e as receitas de Cora, replicadas no café que funciona na mesma área verde de onde Cora colhia as frutas para fazer seus doces. Saiba mais aqui. 

Eu sou aquela mulher

que ficou velha,

esquecida,

nos teus larguinhos e nos teus becos

tristes,

contando histórias,

fazendo adivinhação.

Com a mudança da capital para Goiânia, o movimento por aqui mudou. Ficou mais calmo. A cidade virou Patrimônio Cultural da Humanidade, título concedido pela UNESCO em dezembro de 2001. Caminhando pelo centro histórico, traços da época conhecida como Ciclo do Ouro se revelam. As casas trazem o estilo barroco colonial, feitas de adobe (tijolo de argila) e pau a pique (entrelaçamento de madeira). O conjunto preserva 90% da construção original. Dica: passeie no entorno da Praça do Coreto para observar as construções. Experimente os picolés de frutas típicas vendidos no interior do Coreto. 

Cantando teu passado.

Cantando teu futuro.

Eu vivo nas tuas igrejas

E sobrados

e telhados

e paredes.

Das igrejas, uma não passa despercebido: a da Boa Morte. Nela, há vida. A das peças de José Joaquim da Veiga Valle, o “Aleijadinho goiano” – a paixão da Tia Tó. É no Museu de Arte Sacra da Boa Morte que as histórias da cidade e de Antolinda Baía Borges se cruzam. A simpática moradora poderia ser considerada patrimônio da cidade. Aos 87 anos, cuida do museu com o mesmo entusiasmo com que ajudou a criá-lo, na década de 50. Ao lado do bispo Dom Cândido Bento Maria Penso, selecionou as peças que hoje compõem o acervo. No começo, eram 50. Hoje, são quase mil, entre esculturas, pratarias, porcelanas e objetos litúrgicos. Parte deles está exposto pelos espaços da igreja. É um dos pontos turísticos que você precisa visitar quando estiver na cidade. Aqui embaixo está um vídeo que gravei com a Tia Tó explicando sobre o museu e o amor que ela sente pelo acervo!

Museu de Arte Sacra da Boa Morte
Museu de Arte Sacra da Boa Morte

Eu sou aquele teu velho muro

verde de avencas

onde se debruça

um antigo jasmineiro,

cheiroso

na ruinha pobre e suja.  

Não tem muro, mas tem grade. Outro importante ponto turístico de Cidade de Goiás é o Museu da Bandeira. Alocado na antiga Casa de Câmara e Cadeia, o prédio foi construído com base no projeto da Coroa Portuguesa. A escolha do local, aliás, também seguiu as ordens europeias – tem a ver com o poderio da coroa sobre a população, por isso está no topo, de onde era possível ver tudo. No museu é possível ver objetos que recontam a história da cidade, principalmente na sala dos sinistros, que concentra objetos do incêndio à enchente que abalou a cidade em 2001. Há também esculturas e itens considerados patrimônio imaterial dos índios carajás. O horário de visitação vai de terça a sábado das 9h às 18h, com intervalo para almoço. 

Museu das Bandeiras
Museu das Bandeiras

Eu sou estas casas

encostadas

cochichando umas com as outras.

Eu sou a ramada

dessas árvores,

sem nome e sem valia,

sem flores e sem frutos,

de que gostam

a gente cansada e os pássaros vadios.

Eu sou o caule

Dessas trepadeiras sem classe,

nascidas na frincha das pedras.

Bravias.

Renitentes.

Indomáveis.

Cortadas.

Maltratadas.

Pisadas.

E renascendo.

Inspiradas na poesia de Cora, renascem as mulheres do coletivo Coralinas. Um projeto que ajuda as moradoras a ressignificarem a sua vida a partir da arte, do artesanato. A iniciativa devolve às mulheres a capacidade de sonhar. Desperta nelas o sentido do amor próprio, da valorização enquanto indivíduo. O resultado desse trabalho pode ser conferido na feira que acontece no quintal do museu de Cora, em frente ao café, que citei acima. Junto à produção das mulheres, estão expostos também outros trabalhos de artistas locais. Uma oportunidade de imergir na cultura local por meio da arte. Sugestão? Converse com os artistas, conheça a vida deles. Há muitas curiosidades por trás dos ventrículos, por exemplo, feitos para falar sobre o povo brasileiro.  

Eu sou a dureza desses morros,

revestidos,

enflorados,

lascados a machado,

lanhados, lacerados.

Queimados pelo fogo.

Pastados.

Calcinados

e renascidos.

É em meio à cidade, cercada de morros, que o fogo se faz protagonista. As chamas ilustram o evento mais tradicional, a Procissão do Fogaréu, que é realizada aqui desde 1745. Com capuzes, túnicas e tochas nas mãos, os farricocos, que representam os soldados romanos, perseguem Jesus, numa representação dos momentos que precedem a captura e crucificação de Jesus. A encenação acontece na quinta-feira da Semana Santa, que conta com outras caminhadas e missas. Importante saber: caso opte por visitar a cidade nessa época, reserve hospedagem com antecedência. O evento é um dos principais no calendário local. 

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Minha vida,

meus sentidos.

Minha estética,

todas as vibrações

de minha sensibilidade de mulher,

têm, aqui, suas raízes.

Junto às raízes sensíveis de Cora estão as raízes dos escravos negros que deram à cidade o contorno que ela tem. De paralelepípedo irregulares. De calçadas altas, para driblar as chuvas torrenciais. Da força braçal que ergueu as construções que encantam moradores e turistas.

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Tudo isso, representado numa apresentação completa feita para os jornalistas convidados a conhecer o estado de Goiás. Tudo preparado com o carinho de quem sabe acolher com o que tem de melhor: o amor nos detalhes, a vontade de levar a riqueza da terra que habitam. Um espetáculo de sensibilidade, cultura e sabor.  

Detalhe do jantar preparado para apresentar os pratos típicos.
Detalhe do jantar preparado para apresentar os pratos típicos.

Enquanto a história se conta pelas ruas, no campus do Instituto Federal do Goiás, novos enredos nascem ali. Cheios de inspiração de uma gente que sabe como contar o valor daquilo que os olhos não veem. Gente escrita por Cora Coralina. Gente que faz doce, arte e poesia. Gente que recebe de um jeito que nos faz sonhar em ser Aninha. 

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Eu sou a menina feia

da ponte da Lapa.

Eu sou Aninha. 

Cora Coralina  

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Amabyle Sandri

Jornalista de viagens apaixonada por contar histórias. Criou o Amabilices para inspirar – e informar – quem ama viajar. Já visitou 13 países. Todos os outros estão na lista!